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sábado, 17 de outubro de 2009

Arménio Vieira




O poeta Arménio Vieira recebeu em junho deste ano o Prêmio Camões, prêmio  criado em 1988 pelos governos português e brasileiro e que distingue todos os anos escritores dos países lusófonos.
Vamos conhecê-lo um pouquinho mais...


Arménio Vieira – liberdade e coerência na poesia do poeta-gato cabo-verdiano
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Vieira nasceu na Praia, ilha de Santiago, em 29/01/1941. Foi integrante da geração dos anos 1960 da poesia cabo-verdiana. Geração marcada por uma poesia de revolta e combate ao governo colonial português, à época sob a ditadura salazarista, tendo participado do histórico suplemento “Seló” (1962). Pelo seu envolvimento com a luta de libertação da nação cabo-verdiana amargou dois anos de enclausuramento nas cadeias da PIDE, a polícia política portuguesa. Talvez por isso a opção por um sujeito lírico transfigurado em “touro onírico”, irônico, extremamente irreverente e libertário como era o desejo em ver sua pátria independente, indignado com os desvios éticos de seus contemporâneos: “e lá no alto, rente ao tecto / fazer chichi na presunção / de tantas bestas juntas / santos beatos e jumentos” (Poemas, p. 37).
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Quiproquó

Há uma torneira sempre a dar horas
há um relógio a pingar no lavabos
há um candelabro que morde na isca
há um descalabro de peixe no tecto

Há um boticário pronto para a guerra
há um soldado vendendo remédios
há um veneno (tão mau) que não mata
há um antídoto para o suicído de um poeta

Senhor, Senhor, que digo eu (?)
que ando vestido pelo avesso
e furto chapéu e roubo sapatos
e sigo descalço e vou descoberto.


Fábula de Esopo

Um touro, ignorante de cabeça,
mas rijo de couro e carcaça,
quis ser elefante

Engoliu vento, inflou...
e já feito imenso balão
(de meter medo à selva e ao leão)
deu um estouro e tombou

Um elefante, por ali vagabundo,
esfregou os olhos, descrendo,
e foi acordar em cima dum ouriço-cacheiro

Uma rã pulou à loja, defronte,
e coaxou ao caixeiro:
– Faça favor de me vender um foguete!


CANTO FINAL OU AGONIA DUMA NOITE INFECUNDA
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Como a flor cortada rente e desfolhada 
ou os olhos vazados da criança 
e o seu fio de pranto tênue e impotente 
assim a noite caminha com os astros todos em vertigem
até que se atinge o ponto da mudez 
a pesada mó triturando a sílaba 
a garganta com as cordas dilaceradas 
e uma lâmina ácida e pontiaguda enterrada ao nível da carótida
 

Entenda-se isto como noite e o seu transe derradeiro 
tanto assim que a flor desfeita 
não embala o coração do poeta 
oh não
porque a flor defunta 
se voa
não sobe nunca
e só dura
o espaço breve duma nota


Assim o canto se detém imóvel 
como se da flauta 
falhando súbito 
na boca do poeta 
ficasse o hiato 
ou a saliva
de um tempo devassado por insectos cor de cinza

A voz suspensa e negada

cede a vez à letra amorfa
inscrita no silêncio
com seu peso
de chumbo e olvido
acaba o poema
e um ponto final selando tudo. 

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