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quarta-feira, 25 de agosto de 2010

CRÔNICA DE RUBEM BRAGA


O MISTÉRIO DA POESIA

Não sei o nome desse poeta, acho que boliviano; apenas lhe conheço o poema, ensinado por um amigo. E só guardei os primeiros versos: Trabajar era Bueno em el Sur. Cortar los árboles hacer canoas de los troncos.

E tendo guardado esses dois versos tão simples, aqui me debruço ainda uma vez sobre o mistério da poesia.

O poema era grande, mas foram essas palavras que me emocionaram. Lembro-me delas às vezes, numa viagem, quando estou aborrecido, tenho notado que as murmurro para mim mesmo, de vez em quando, nesses momentos de tédio urbano. E elas produzem em mim uma espécie de consolo e de saudade não sei de que.

Lembrei-me agora mesmo, no instante em que abria a máquina para trabalhar nessa coisa vã e cansativa que é fazer crônica.

De onde vem o efeito poético? É fácil dizer que vem do sentido dos versos; mas não apenas do sentido. Se ele dissesse: Era Bueno trabajar em el Sur, não creio que o poema pudesse me impressionar. Se no lugar de usar o infinitivo do verbo cortar e do verbo hacer usasse o passado, creio que isso enfraqueceria tudo. Penso no ritmo: ele sozinho não dá para explicar nada. Além disso, as palavras usadas são, rigorosamente, das mais banais da língua.
Reparem que tudo está dito com elementos mais simples: trabajar, era Bueno,Sur, cortar, árboles, hacer canoas, troncos.

Isso me lembra um dos maiores versos de Camões , todo ele também com as palavras mais corriqueiras de nossa língua:
"A grande dor das coisas que passaram".

Talvez o que mais me impressione seja mesmo isso: essa faculdade de dar um sentido solene e alto às palavras de todo dia. Nesse poema sul-americano a idéia da canoa é também motivo de emoção.

Não há coisa mais simples e primitiva que uma canoa feita de tronco de árvore; e acontece que muitas vezes a canoa é de grande beleza plástica. E de repente me ocorre que talvez esses versos me emocionem particularmente por causa de uma infância de beira-rio e de beira-mar. Mas não pode ser: o principal sentido dos versos é o do trabalho; um trabalho que era bom não essa "necessidade aborrecida" de hoje. Desejo de fazer alguma coisa simples, honrada e bela, e imaginar que já se fez.

Fala-se muito em mistério poético; e não faltam poetas que procurem esse mistério enunciando coisas obscuras, o que dá margem à muito equívoco e muita bobagem . Se na verdade existe muita poesia e muita carga de emoção em certos versos sem um sentido claro, isso não quer dizer que, turvando um pouco as águas, elas fiquem profundas...

terça-feira, 17 de agosto de 2010

E para falar em saudade...

Falar em saudade, para Eurídice, aquipoetisa e monalisa da Confraria, é poetisar sobre mudanças, boas mudanças em um céu de brigadeiro...

Céu de brigadeiro

Passei a noite
tecendo asas e
decolei ao amanhecer.
Buscava uma visão
de condor e um roteiro.
Voei em espirais e
eufórico, suei nuvens.
Insisti no azul, me apoderei
da linha do horizonte e tracei
rotas por sobre os humanos.
Segui trilhos no ar como
quem nasceu para voar.Vi com olhos de águia e
elegi alvos sobre-humanos.
Arremeti medos e incertezas e
senhor de um céu de brigadeiro,
esperançoso, me descobri
pássaro novo.

Voa Eurídice, ave nova, redescoberta, quem nem a Heliane...

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Tirando o chapéu para Edney Silvestre


“Se Eu Fechar os Olhos Agora”, de Edney Silvestre, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2010 na categoria estreante, é um romance finamente urdido, que transita entre vários gêneros (policial, formação, social, histórico), constituindo-se um excepcional painel da vida brasileira no comecinho da segunda metade do século passado.


Passa-se numa cidade do interior do Rio de Janeiro, zona cafeeira de antigo esplendor, onde o corpo mutilado de uma bela mulher é encontrado à beira de um lago por dois garotos de 12 anos, na data em que o astronauta russo Iúri Gagárin subiu ao espaço pela primeira vez a bordo de uma nave espacial, em 12 de abril de 1961.

A partir daí, com grande domínio do texto, inclusive lançando mão de todo um arsenal de recursos conhecidos apenas dos que têm pleno conhecimento do código literário, Edney Silvestre vai desenrolando sua trama em que, paralelamente ao interesse nunca arrefecido pelo desvendamento do pavoroso crime que envolve altas figuras da sociedade local, são expostas algumas chagas da sociedade brasileira, como o classismo, o racismo e o machismo, ainda hoje não plenamente saradas.

Se alguns apontam que, em certos momentos, os diálogos entre os dois guris soam excessivamente maduros, vale lembrar que a narrativa sai da boca de um deles já na maturidade, quando os fatos vividos e a sua memória se enredam de tal maneira que dificilmente se distingue o que aconteceu da sua reconstituição pelas lembranças. Questão que é inteligentemente colocada pelo narrador no trecho a seguir, a propósito de uma canção (“Noche de Ronda”) ouvida na época e recordada nevoentamente depois por um dos protagonistas:

“Eu nem sabia como era a vida dela naquela noite. Imaginei a canção mais tarde. Ouvi a canção mais tarde. A música em espanhol, a voz na noite, tudo foi acrescido e... Não. Não. Não. Tenho certeza: ouvi naquela noite. Uma voz de homem. Acho que era. Faz sentido: voz masculina. ‘Ella se fue’, ele canta. Quem lamentava o abandono era ele. Uma voz masculina. Acho. Tenho certeza. Acho. Voz masculina, grave. Na mesma noite do dia em que encontramos o corpo dela”.

Jornalista do primeiro time, entrevistador sensível de escritores na televisão, plenamente familiarizado com o universo literário, Edney estreia na ficção com o pé direito.

Texto integralmente extraído de http://www3.interblogs.com.br/homerofonseca/