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sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Lúcifer e eu


Por Flávio Aguiar.

A escrita e a publicação de meu recente livro sobre a Bíblia, em tom paródico, me trouxe uma série de recordações bíblicas e colaterais.

Entre elas, meu entrevero com Lúcifer, quando eu era professor da ativa na USP.

Naquele tempo dava eu seguidamente curso sobre Grande sertão: veredas. E era inevitável que, durante as aulas, eu falasse no nome do Diabo, e suas variantes: desde as pessoais, como Lúcifer e Belzebu, até as genéricas, como Cujo e Cão.

Deu-se no entanto o singular acontecimento de que, num desses cursos havia uma aluna que devia ser especialmente religiosa, quem sabe carola. E cada vez que eu pronunciava o nome do Cujo, em qualquer variante, ela se benzia.

Era uma tortura. Mas que acabou levando a outra.

Porque em verdade, em verdade vos digo, aquela situação aziaga despertou não sei que veia sádica dentro de mim, mas que em meu corpo ou alma devia dormitar desde sempre.

O fato é que comecei a multiplicar as menções ao nome temido. Era uma guerra: eu dizia de cá, e ela benzia-se de lá, com cada vez mais frequência e em maior velocidade. Eu me sentia como parafraseando uma canção que certa vez ouvi pela boca de Tom Zé: “era eu, era ela, era ela, era eu, nós dois numa demanda, nem ela ganhava nem eu”.

E assim passaram-se semanas, até que notei que o restante da classe se dera conta da demanda, e começara a curtir aquilo. Via-se nos olhares açulados e nos ouvidos quase em pé que a turma aguardava ansiosa o desenrolar da disputa, talvez seu desfecho dramático.

Aí o anjo-da-guarda de minha consciência de professor falou mais alto, e eu decidi pôr fim àquela sandice. Para começar, aproveitei um dia em que aquela aluna faltou.

Expus a questão, com sinceridade para a classe. Disse que a gente devia respeitar as crenças uns dos outros, e declarei que iria conversar com ela a respeito de não serem aquelas referências que eu fazia ao nome do Pé-de-Cabra uma invocação, mas uma necessidade da interpretação crítica da obra em tela.

Ademais, eu disse, entusiasmado pela receptividade que eu notara às minhas morigeradas palavras, eu achava que todo mundo tinha um pouco de medo do Diabo.

Fui falando: “só acredito que alguém não creia no Diabo, se esse alguém, numa sexta-feira 13, à meia-noite, num quarto escuro e fechado, invocar três vezes o nome dele, assim: Lúcifer! Lúcifer! Lúcifer!”

Pois no terceiro “Lúcifer!” que eu disse entrou pela janela um enorme e barulhento besouro:

“bzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz”.

E como entrou, saiu.

Olhei para a classe, a classe olhou para mim. Houve alguns risos amarelos. Felizmente, era hora do intervalo.

Conversei de fato com a aluna. Sem citar o nome Dele. Ela entendeu. Moderei minhas chamadas do seu nome.

E nunca mais voltei ao assunto.

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Extraído de http://boitempoeditorial.wordpress.com/2012/12/20/lucifer-e-eu/

Um comentário:

Ianê P.Bezerra Lameira disse...

Bom demaiiiss, rsrsrsrs