A partir de hoje vou publicar aqui alguns textos editados nos livros da Confraria d`A Cova dos Poetas, iniciando pelo conto fantástico do nosso Confrade-Mor Alberto Abadessa, A janela tragadora, que integrou a 3a. coletânea da Confraria, intitulada Vôo Noturno, de 2004.
A janela tragadora
Vivia Flávio Kato em sua casinha tranqüila. Chegava do seu simples emprego, de sua profissão com as máquinas de carros; ele era mecânico feito pela prática, pois desde pequeno, seu pai, já falecido, o colocara para tal profissão, tendo como lema a teoria: “tal pai, tal filho”. Kato fora casado dois anos, dois anos de sofrimento para sua vida. Sua mulher era completamente diferente de si, era temperamental e muito jovem. Ele casara com vinte e oito anos enquanto sua ex‑mulher, no sentido cartorial, ia completar dezenove anos. Apesar dele ser mecânico, não era um sujeito bruto como costumam ser os de mesma profissão.
Pedira o divórcio para sua mulher e foi atendido prontamente no Tribunal. Vivia com os nervos à flor da pele.
Até que, numa noite calma e sem chuva, tivera uma grande discussão com a mulher (as desgraças tendem a acontecer em tempo de chuva) e bateu nela com violência, deixando‑a quase desfalecida, pois ela havia dito que ele não passava de um homem frouxo, não sendo o único homem com quem dormia. Foi aí que Kato perdera sua calma.
Se fosse um sujeito famoso, diriam em sua biografia que nascera calmo e casara com uma mulher rebelde e sem escrúpulos, mas como Flávio Kato não passava de um mecânico com diploma do primário, fora parar na cadeia por seis meses. Só lembrava que, na noite da pancadaria na qual o silêncio era interrompido pelos gritos de sua mulher, não compreendeu certos movimentos de sua janela.
Com os pensamentos levados à traição da mulher e ao estranho movimento da janela, Kato passou as mãos por entre os cabelos e entrou em sua casa ressequido. Pensava que com o tempo, tudo ia esquecer. Mas nada esquecera, era só entrar em casa que sentia a presteza das angústias e das recordações de sua esposa.
Foi até a cozinha, tirou de sua geladeira uma conserva, preparou‑a e sentou‑se à mesa para jantar. Ao terminar de jantar, o pacato mecânico acendeu as luzes da casa e foi até a janela. Olhou‑a com certo medo no coração e se encostou a ela para olhar a noite. Sentiu vontade de dar uma volta pelas ruas da cidade, mas o medo e o cansaço o fizeram ficar em casa.
Saiu da janela, sentou no sofá e depois se deitou. Lembrou‑se de sua esbelta mulher. Não podia esquecê‑la. "Muitas vezes", pensou Kato, "ela estava ali sentada na poltrona me convidando pra sair, ir dançar nas casas de festas, beber; quando não conseguia, vinha mexer comigo até levá‑la pra cama carregada em meus braços. Eu amava minha mulher e se voltasse um dia, da forma que fosse, eu a aceitaria. Oh! Como sou idiota, devia odiá‑la, mas ainda a amo e não encontro uma mulher para amar. A vida não deveria ser dessa maneira. E o que mais me intriga é que meus vizinhos pensam que levo uma vida tranqüila, eles não sabem o que vai dentro do meu coração, pensam que só vivo para as malditas máquinas que desde pequeno não me largam, não me deixam um só dia, só fiquei livre delas quando fui preso”. E continuou:
“Passei o diabo na cadeia, vivi com ladrões e assassinos. Mas não consegui esquecer minha mulata, já tentei, já tentei e não consegui. O pior é que nem amigos eu tenho”.
E dentro de sua desolação o mecânico caiu no sono.
Teve um terrível sonho. A janela do seu quarto saiu atrás de sua mulher. Ao encontrá‑la com um amante, na cama de alguma pensão da cidade, tragou-os sem dar oportunidade de falarem a ninguém. E seguiu sua tragação pela cidade, lançando dentro do seu espaço vazio um cão, um gato e um carro, seguindo para a oficina. Lá estavam os mecânicos trabalhando, só não estava Kato. A janela primeiramente tratou de tragar os carros e depois os operários, em seguida saiu em direção do escritório do dono da oficina, um ex-mecânico que com seu esforço conseguiu levar a cabo seu sonho de ter uma oficina sua. Ao deparar com aquela matéria sólida, deu um sorriso lascivo com seu vasto bigode de homem de negócios. Pensou que fosse alguma brincadeira de um dos seus empregados.
Abriu a janela de seu escritório e deparou com sua oficina completamente vazia tanto de carros como também de seus funcionários. Os cabelos de seu corpo se arrepiaram todos. Quis gritar pelos pulmões algo que tirasse seu medo, o que somente o ser humano sabe expressar quando está em dificuldade. Devido à grande falsidade da humanidade, os homens só possuem medo quando estão em dificuldade e o dono daquela oficina estava prestes a morrer.
A janela tragadora, como se fosse dirigida por algum aparelho magnético, se aproximou da mesa e tragou todos os papéis e o dinheiro que o homem contava quando ela entrara em seu escritório.
O homem, apavorado ao ver tudo desaparecer no espaço vazio da janela, correu para a porta tentando fugir, mas encontrou a porta trancada; voltou‑se para a janela e encontrou‑a aberta. Olhou então para baixo, eram uns quatro metros de altura, mas era sua vida que estava em perigo. Um espaço engolindo tudo, não podia acreditar e não podia ter muito no que pensar. A janela parecia gostar de magoar no fundo o dono da oficina.
E, como o medo é o propulsor dos grandes saltos do homem contra muitas injustiças de outros, ou seja, de homens para outros homem, o homem se lançou da janela de seu escritório para a oficina. Porém, como se a janela tragadora houvesse computado o tempo em ano luz de velocidade, lançou‑se ao homem antes que caísse no solo do seu ganha pão.
A janela tragadora segurou o homem e fez diferente dos demais que havia tragado até então. Foi tragando o homem devagarzinho, começando pelas pernas como se ela fosse um desintegrador que não deixa vestígio, o tipo de arma pro crime perfeito.
Ao ver‑se desaparecer, o homem clamava por Deus, pelos homens, pelos nomes de seus empregados e ninguém vinha à sua procura. O estranho que acontecia para o homem era que seu corpo já estava na metade e ele ainda não havia morrido. Ele continuava a gritar, a chamar por Deus, por Jesus e outros profetas, por seus pais que já haviam ido para o além. Num piscar de pensamentos o homem imaginou que aquela janela era um espírito muito poderoso e que ao seu pai e a sua mãe já mortos poderia pedir pra que não morresse. Mas o pedido para seus pais não foi atendido, seu coração já havia sido tragado e só faltava a cabeça. Seu corpo desaparecera mas, ainda estava vivo e continuava pedindo para ficar vivo.
O fim do homem chegara, tudo nele havia desaparecido. E a janela, não conformada, começou a tragar o edifício onde havia carros, operários e patrão. E quando tudo estava um vazio, ela partiu pelo ar da escuridão. Olhou para as estrelas como se estivesse agradecendo sua destruição.
A janela parou a uma certa altura, na direção da lua como se estivesse sorrindo para sua beleza e como se quisesse dizer: “Se tivesse mais algumas janelas como eu nessa esfera de homens gananciosos, homens criminosos, homens que não sabem a beleza de suas próprias naturezas, que não podem fazer tudo mais belo e mais sereno e tranqüilo como tu, oh lua!, oh estrelas belas que iluminam o céu e se casam entre si, sem nenhuma força política contradizendo suas formas de amar”.
“Traguei crápulas, traguei crápulas, me cansei de tragar crápulas, me cansei, me cansei. Mas tu, oh lua, estrelas, me perdoem, porque a humanidade cansa, a humanidade cansa como eu cansei de tragar crápulas”.
“Me espera lua, me esperem estrelas, falta algo, falta tragar mais um crápula”.
Kato acordou de repente no meio da noite apavorado com o sonho que tivera e exclamou:
Esqueci a casa aberta!
Passou as mãos nos olhos, sonolento, e ao retirar a mão do rosto, deparou com a janela tragadora no meio de sua sala. Olhou para o lugar de sua janela, lá estava ela aberta, faltava somente fechar.
O homem recuou um pouco, pensando que ainda estava dormindo, que ainda estava sonhando com uma janela que tragava os crápulas da humanidade. Mas Flávio Kato estava acordado, ele sabia que estava acordado. Sentiu um calafrio quando a estranha janela branca aproximou‑se de si, o medo era toda sua vida naquele momento.
Lembrou‑se do seu sonho, do escritório do seu patrão e que sentiu o maior medo. Só que não era aquela janela que tragara gatos, cachorros, sua mulher, e seu patrão, esta era a de sua casa, a que ele vira mexer quando quase matara sua mulher de pancadas.
Bem próximo da janela branca, ele suava por todos os poros. Um grito de medo saiu de sua boca. Mas logo se fez um silêncio terrível dentro de sua casa.
A janela o tragara.
A beleza do céu, através do brilho da lua e das estrelas que ainda iam casar, e que pareciam muito felizes com o ato, refletia dentro da casa, onde no silêncio, só se escutou o barulho do fechar da janela.
Alberto Abadessa
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